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domingo, 1 de julho de 2012

A POESIA DE MARTINS NAPOLEÃO

Faz uns dois meses procuro penetrar a obra de Martins Napoleão - a obra poética. É quanto mais leio os seus extraordinários versos, mais ajoelho perante a sabedoria do poeta. Deus e céu - eis a razão primeira dos poemas desse camoniano inimitável. Não sei se nele Deus é sabedoria, ou fé:

- A forma por que Deus se faz presente...

- Povoado é o céu e a terra está vazia...

- A poesia está no céu suspensa...

- O céu como um navio iluminado...

- O céu atônito fechando as portas...

- E o céu se enrole como um pergaminho...

- Como força do céu descomedida...

- Ergui os olhos para os céus...

- O céu distante como olhar de cego...

- A pureza da terra aspira ao céu...

- Como que deus está por trás da noite...

- Pelo espaço não há mais céus recurvos...

- Céu mais belo em reflexos de águas mansas...

- Parece que já estão subindo aos céus...

- E esta obsessão daquele céu lavado...

- Só por amor de Deus amando as almas...

Depois de Deus, depois do céu, aquilo que Deus tanto pregou, no exemplo do filho, o sofrimento. A poesia de Napoleão semelha lágrimas e dor, é sofrimento - projeção de Deus no filho Cristo:

- A dor em que ando imerso...

- Chorei, chorei, chorei...

- Que eu canto como quem chora...

- Quando se quebra o cântaro dos prantos...

- Como estrelas chorando sobre a serra...

- Não sei se existe, sei que chorei...

- Se a luz já vem na lágrima que desce...

- E na boca este gosto de desgosto...

- Não sei se é suor ou se é lágrima...

- É o meio de esquecer que estou sofrendo...

- O gosto de cantar se faz desgosto...

- A luz é a maior lágrima do mundo...

- Para em lágrimas rogar...

- Uma vontade simples de chorar...

Depois, a pedra, como simbolização das durezas espirituais da vida:

- Pedras de almas!

- Em óleo a palavra é mole, em pedra torna-se dura...

- Como que escalavra a pedra da boca...

- Arremessar-te ao chão de pedra...

- Árvore, pedra, casa abandonadas...

- Brota do coração das pedras...

E o vento, - o vento tempestuoso, ou o sopro doce e poderoso que dá vida à natureza:

- Pássaros e ventos...

- A noite como um negro vento...

- Estas palavras que soluço ao vento...

- Luta com o céu e o vento solitário...

- Cai a noite e o vento é forte...

- Vento da noite, na tua asa errante...

- Ó vagabundo vento...

- Leve-me agora, vento...

Adiante, os anjos. O mundo também é dos anjos. A gente não sabe se o poeta fala dos anjos maus, ou se são bons os anjos de Napoleão. Deus tem os anjos como seu espírito e Ele dizia que há os anjos bons, de quem Cristo afirmou que têm a face de meu Pai que está nos céus:

- Em meio aos anjos e às almas...

- Procuro não pensar nesse anjo louco..

- A desaparição total dos anjos...

- Anjo natural fechando as asas...

- Homem e anjo num só...

Volta-se o poeta para o mar, como roteiro de inspiração - o mar inimitável, bravio às vezes, às vezes sossegado - testemunho da grandeza da criação divina. Deus, céu, lágrima, sofrimento, anjo, agora o mar:

- O mar é que espelha o céu...

- O mar escande o verso...

- No brumoso mar...

- Em ti como no mar eu me aprofundo...

- Extraordinário mar...

- Amargo de mar em minha boca...

- Fui para o mar da vida...

Nele, o sonho. Quase tudo na sua poesia é sonho. Sonho permanente, sonho com a mulher amada, com a virtude, com a glória. Sonho com a felicidade tão distante dele. Deus, céu, lágrima, sofrimento, anjo, mar, sonho:

- O que uma estrela sonha a lua pensa...

- Mas tinha alguma cousa do meu sonho...

- Matei os sonhos que eram meus irmãos...

- A forma e a essência, o real e o sonho vão...

- Não é possível que haja visto em sonho...

- Ora sonham com Deus as criaturas...

- e deste sonho se ilumina a terra...

- Ó cavalo do sonho...

- Ó centauro do sonho...

- Sonho e derramo lágrimas...

- Os caminho do sonho são mudáveis...

- Quanto é difícil caminhar sonhando...

- Que o sonho não é sonho de verdade...

- Mas o ímpeto do sonho ia mais alto...

- Vi meu sonho de súbito subir...

- O sonho nasceu da noite...

E a presença da morte. O poeta aceita a morte como processo de extermínio do sofrimento - o sofrimento como imposição de Deus. Gourmont acentuou que ponto interessante no estudo da linguagem dos poetas está na determinação das palavras características do estilo do autor. Há em Napoleão forma e essência - dois aspectos do mesmo conteúdo significativo que Augusto Meyer encontra em Camões. Mallarmé admite que a poesia não se faz com idéias mas com palavras - palavras que sejam poesia. Napoleão domina a palavra, mas não falo da palavra como entidade fonético-psíquico-social. Ele a domina como conceito, porque lhe concede a origem e o processo semântico que ela - a palavra - padece. O português é forma do latim usual. Ninguém domina mais a palavra na sua propriedade do que Martins Napoleão, entre os contemporâneos. Falo, porém, da palavra na sua obra poética. Da palavra como poesia. Como conteúdo de poesia. Como mensagem poética. Já se disse que tudo em Tomás Antônio Gonzaga se expressa nos adjetivos formoso, lindo, mimoso, depois irado. Sim, irado na parte segunda do "Marília de Dirceu", escrita na prisão. Duro é o adjetivo de Camões, da forma que lhe foi dura a existência. Em Álvares de Azevedo há um fundo ideológico, a morte, com os adjetivos pálido, decorado, desmaiado, lívido, frio, gelado. O cunho religioso da obra de Alphonsus de Guimarães se patenteia nos adjetivos pobre ("predicado social e intelectual da religião") e mísero ("exprime na filosofia católica a condição ínfima da criatura à mercê da piedade de Deus"). Em Martins Napoleão a essência não se revela pelo adjetivo. Mas pelo conceito: Deus, lágrima, sofrimento, anjo, mar, pedra, vento, sonho, morte. eis alguns dos seus versos em que a morte vale a essência:

- Pouco me importa se é viva ou morta...

- Nesta manhã é a morte...

- Só a morte não tem origem...

- Antes de ti morreu uma açucena...

- Vendo a terra passar branca de morte...

- Invenção da saudade contra a morte...

- A morte verde ri com dentes amarelos...

- Aonde a morte chegou sempre tão doce...

- Às perguntas da vida para a morte...

- Onde começa e morre a nossa história...

Há verdade em dizer que o sofrimento sublima o homem. Cristo negou pregou o sofrimento com o exemplo. Sofrimento e luta, bem identificados. Martins Napoleão deve lembrar-se do seu soneto exemplar:

- Graças a ti, Senhor, pela esmola da vida!

A vida é a graça divina. Em razão disto, é luta. Foi concedida e doada para a coragem da luta. Cristo foi autêntico lutador. Lutador em benefício do sofrimento. em toda a obra de Napoleão se enaltece o sofrimento. Obra bíblica.

Martins Napoleão entendeu a angústia universal dos homens em solidão, dos homens sem afeto. Entendeu a civilização industrial e o seu cortejo de malefícios. entendeu que a máquina retirou a mulher do lar e do lar varreu o afeto, conseqüentemente a educação. O mundo é sombra:

- Entre as nossas sombras frias...

- Como através da sombra a luz solar...

- Mal roço aquela sombra...

- Se é luz ínsita em lâmina de sombra...

- Sombras arrebatadas pela frente...

- Só mesmo as sombras estariam perto...

- Como uma sombra transformada em pranto...

- Louvada seja aquela sombra humana...

- Sombras na terra só...

- As sombras estão cansadas, dormindo pelas estradas, rezai comigo...

Martins Napoleão vai falar sobre Camões. Orgulho para a Academia Piauiense de Letras trazê-lo aqui, sob o patrocínio do governador Alberto Tavares Silva. Daquele Camões que é o seu secretário, o secretário da sua poesia, da sua linguagem, das suas dores e dos seus sofrimentos. De Camões ele disse:

Vem a mim, meu tão certo secretário,
irmão mais velho em dor, amigo isento:
Só ao teu coração confio o vário
queixume que de amor experimento.

Para falar contigo abro o rimário
dos teus sonetos e canções, e ao vento
digo o teu sofrimento extraordinário
como se fosse o meu teu sofrimento.

Eis Camões redivivo na palavra de glória de Martins Napoleão.


TITO FILHO, Arimathéa. A poesia de Martins Napoleão. IN: NAPOLEÃO, Martins. Folhas Soltas ao Vento. Teresina: COMEPI, 1980. p. 229-235.

ÚLTIMA PÁGINA

Clidenor Freitas reuniu neste livro trabalhos de natureza vária - a mensagem espiritual e afetiva dirigida aos filhos no dia em que concretizava a idéia e o sonho de dotar Teresina com moderno sanatório de tratamento e repouso - e na carta corajosa condena o dinheiro como finalidade e destinação da vida. Estuda também as raízes históricas do latifúndio, em depoimento de erudição; considera que o nacionalismo se apóia sobre bases psicológicas; faz critica literária no melhor estilo; narra as virtudes de estadista de José Antônio Saraiva, o fundador de Teresina; demonstra que a crise do homem moderno tem relação com o processo comunicativo da televisão; expõe sobre a ciência da imunologia novas idéias; - acrescenta a essas seguras lições de sabedoria artigos de jornal, valiosos como fisionomia de uma sociedade que agoniza afundada nos seus próprios erros e contrastes.

Este livro, editado pela Academia Piauiense de Letras, homenageia a passagem dos 441 anos do nascimento de Miguel Cervantes Saavreda, o genial criador do Dom Quixote, o livro que resume a lição das mudanças sociais, de crítica aos costumes e dos conselhos da experiência objetivo em favor do homem.

No autor não se encontra somente o cientista. Nele se alteiam também sentimentos de apurada sensibilidade, bom gosto, linguagem simples, mas castigada de asseio, elegante, como soem cultivar bem o vernáculo os doutores na arte de curar os males do corpo e do espírito.

Numa existência de lutas contínuas em benefício coletivo, Clidenor nunca esqueceu os deveres de alimento dalma, a leitura, que lhe doura e incentiva a inteligência, para conceber e criar - assim da forma que a vida, para ele, se torna bruta e intolerável quando não tocada pela imaginação.

Estas páginas constituem documento crítico e literário, - um documento revelador de incontestável cultural humanística - a amplitude, a profundidade e o sentido das belas letras que ele tem cultivado.


In, FREITAS, Clidenor. Ideologia e Circunstância. 2 edição, Teresina: Academia Piauiense de Letras / Projeto Petrônio Portella, 1988. p. 185.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

UMA VIDA LONGA E ÚTIL

A 24 de julho de 1982, Cristino Castelo Branco inteirou noventa anos de idade. Qual o segredo desse homem? Aos noventa janeiros lúcido, sereno, tranqüilo, generoso, transbordante de virtudes morais, espirituais, intelectuais, rodeado de amizades, rico de afeto junto à constelação familiar - a constelação a que ele e a esposa deram exemplos edificantes nesta longa viagem terrena.

Cristina foi advogado, e creio que do advogado nasceu o juiz. Que faz o advogado? Examina fatos, interpreta a lei, para facilitar a missão do juiz. O juiz decide sobre aquilo que o advogado preparou pela discussão. Discutir fatos, com critério e inteligência - eis a primeira missão do profissional. Sem atitudes passionais - eis o recurso maior de discutir com seriedade. Discutir já insinua discordar - e o direito de discórdia, a coragem da discórdia, o dever da discórdia - com isto começa o homem consciente, começa a personalidade humana íntegra.

Cristino foi notável advogado. Também magistrado justo, uma das vozes incorruptíveis no Tribunal de Justiça do Piauí. Cultura jurídica invulgar. Modelo de julgador. As suas decisões sempre concretizavam a exegese sabiamente aplicada aos processos. Nunca se afastou do verdadeiro e do real, tanto nas normas da vida como nas superveniências da consulta individual em face das necessidades coletivas. Aposentou-se, entregando a história do Poder judiciário do Piauí nome imaculado, exemplo de labor e de retidão.

Velhice de serenidade - dele Odylo Costa, filho, quando o elogiado completou setenta anos. Aos oitenta anos dessa velhice Odylo diria da mesma forma. Por que a serenidade? Qual o seu extraordinário segredo? Porque ao longo dos anos Cristino nunca se desviou para a inveja, para o ódio, para as verdades das ambições vulgares, para fugir ao trabalho e ao cumprimento do dever. Homem-padrão, no mais amplo sentido do termo.

Ao lado do caráter límpido e admirado, do jurista de elevado conceito - o poeta e o prosador, cujos escritos revelam o homem reto, o homem cívico, homem que deve, depois de colocar a mão sobre a consciência, estar satisfeito com o que tem praticado na vida. Anos a fio escrevendo, ensinando, educando, para construir obra literária vigorosa, alteada por conhecimentos profundos expressos com asseio de linguagem, num estilo de encantadora simplicidade. Dele a lição ou a observação: "Os que desdenham o conhecimento da língua não são sinceros. Só erram, só escrevem errado, por ignorância. apanhados em erro, apontados em erro, irritam-se, deblateram".

Parece que a cabeça de Cristino continua sem preguiça. Entre os oitenta e noventa anos continuava escrevendo e lúcido permanece na paz de sua vida. Honrou as letras jurídicas nacionais com quatro trabalhos: "Codificação Processual", "Razões de Advogado", "Pareceres de Procurador Geral", "Decisões Jurídicas". Como trabalhos literários publicou: "Homens que iluminam" - magistrais análises de Rui, Pedro Lessa, Lucídio Freitas, Clodoaldo Freitas, Da Costa e Silva, Salvador e Lúcio Mendonça, Tobias Barreto, Silvio Romero, Bilac e Clóvis Bevilaqua. "Frases e Notas", "Sonetos" e "Escritos de Vário Assunto".

A 24 de julho último, num lar tranqüilo da rua Genserico Vasconcelos, no Engenho Novo, bairro da mui leal cidade do Rio de Janeiro, cercado da família, que o venera, Cristino perfez noventa anos. E a todos certa feita consagrou esta lição: "Poucos sabem ser velhos, dizem os franceses. Saibamos sê-lo. Sem tergiversações. Sem atitudes ridículas. Sem medo da vida humana tem o mesmo encanto do outro que contemplamos todas as tardes quando o dia se aproxima da noite. Há em ambos o mesmo tom de suavidade, de êxtase, de melancolia, que transfigura a natureza e transfigura o homem. O sol poente, desaparecendo para lá da montanha, não é mais impressionante que o homem, no alto da vida, despido das ilusões que se foram. Equivalem-se. A despeito disso, os velhos também têm futuro, um futuro radioso, um futuro eterno. O futuro dos velhos é a vitória dos filhos, a vitória dos netos. Mais que isto. O futuro dos velhos é a presença de Deus, que se avizinha".

Pertence Cristino a Academia Piauiense de Letras.

Qual o segredo da serenidade de Cristino? Simples: o cumprimento do dever para com a humanidade, perfumando-a, como ele disse certa vez dos homens justos e bons.


TITO FILHO, Arimathéa. Uma vida longa e útil. In: Cristino, vida exemplar. Organização: ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. - Teresina: Júnior, 1992. p. 86-87

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A. TITO FILHO, um imortal

Teresina acaba de perder um filho que a amou intensamente. Tito Filho, que a cantou em prosa e verso, legou esse bem-querer as suas filhas ao testemunhar seu grande afeta a terra amada em seu livro TERESINA MEU AMOR, em que diz: "Mimosas filhinhas, nascidas em Teresina, com um pedido de coração: nunca deixem de amar esta cidade".

Partiu Tito Filho, deixando o Piauí órfão de uma inteligência das mais fulgurantes, legando assim aos pósteros vasta produção literária para pesquisadores e estudiosos da cultura piauiense.

Sua passagem terrena, sem ter como objetivo maior os bens materiais, foi assinalada pelo dedicação abnegada à família, às letras e também à preservação dos amigos. Ao deixar nosso convívio, certamente estará partilhando da companhia da mãe Nize, de quem Deus o separou em tenra idade, e do pai, em cuja companhia cresceu com desvelo e bons exemplos. Não será mais o serzinho gentil, de quem o pai falou ao despedir-se da companheira querida, mas um espírito de luz na glória dos bem aventurados:

"Parece sozinho... Mas ficou no mundo
Um serzinho gentil, rebento santo
De nosso amor grandíloquo e profundo

Deus te guarde no céu, morta querida,
como nosso filhinho guarda o pranto,
- Sinal eterno de eternal ferida".

Também com minha cidade, Tito Filho manteve laços de afetividade, dado que seu pai, em segunda núpcias, casou-se com moça de Piripiri, dona Edite Rezende. Menino, por lá passou férias, lembradas assim por ele: "Nas ruas e praças de Piripiri, brinquei peralta, com meninos do meu tope, quando passava férias em casa do velho Bugi, pai de minha madrasta Edite Tito. Sou intenso admirador de Piripiri, lugar cujos bons amigos meus são muitos" (Livro O Reconhecimento - Prefeitura Municipal de Piripiri - 1988).

Guardo do saudoso mestre exemplos dignificantes de competência e simplicidade. Fui seu aluno na antiga Faculdade de Filosofia do Piauí, onde lecionava Português com absoluto domínio da matéria. Pelos caminhos da vida, perdi, por alguns, contato com o emérito professor Arimathéa Tito. Há dois anos, porém, voltei a encontrá-lo por ocasião do lançamento no Piauí, de meu modesto livro O Ponta-de-Rama, sobre o qual fez generoso comentário na imprensa de Teresina, certamente como incentivo ao autor.

Na Academia Piauiense de Letras, de que era presidente, pude testemunhar o trabalho inteligente e profícuo que ali realizava em favor daquele sodalício, contando ainda com a colaboração atenta da esposa Delci, além, é do "Livro do Mês", promoção da academia recebo também a publicação mensal "Notícias Acadêmicas", em cuja leitura, de vez a vez, pressinto o estilo sério, atual e corajoso do pranteado amigo.


Por Fabiano Melo. In: O Dia, Teresina, 16.17.18 agosto 1992. p. 4

terça-feira, 1 de maio de 2012

DULCÍLIA E CRISTINO

Cristino Castelo Branco escreveu no seu livro "Frases e Notas" o seguinte: "A 17 de janeiro de 1914, casei-me com minha prima Dulcília Santana Castelo Branco, órfã de pai e mãe, sem bens de fortuna, mas rica de virtudes e de beleza". O admirável homem de letras que ele foi e faleceu em 1983, com mais de noventa anos. Ela, mulher de profundos sentimentos de pudor e de dignidade, deixou este eterno vale de lágrimas em novembro de 1987. Viveram juntos os dois, na mais completa harmonia, honrando a família e a sociedade, nada menos do que quase setenta anos, dos quais vinte e cinco nesta hoje atormentada Teresina e o restante na cidade do Rio de Janeiro, para onde o casal, com os filhos, se mudou no distante 1939.

Jurista e escritor ilustre, Cristino advogou na capital piauiense, conceituado e brilhante, interrompendo a carreira em 1917 para assumir o Juizado de Direito do Brejo dos Anapurus, no Maranhão, e lá se demorou até novembro de 1919, e de regresso à sede do Governo piauiense reabriu o escritório de advocacia. No período em que esteve como juiz, fundou-se a Academia Piauiense de Letras, razão por que ele, dos mais aplaudidos poetas, oradores e jornalistas do seu tempo, deixou de figurar entre os dez fundadores. De cultura jurídica invulgar, quando se reorganizou a justiça do Piauí, logo após a revolução de 1930, o governante do tempo convocou-o para compor o Tribunal de Justiça, que ele engrandeceu, aposentando-se em 1939, quando legou à história do Poder Judiciário nome imaculado, exemplo de labor e de retidão.

Dulcila foi mãe de Carlos Castelo Branco, o jornalista de fama internacional, pertencente à Academia Brasileira de Letras e o substituto do pai na Casa de Lucídio Freitas, e sogra de Waldir Gonçalves, historiador de mérito, mestre da mocidade, casado com uma senhora de personalidade inatacável. Outros filhos alegraram o lar agora vazio das duas maravilhosas criaturas que o construíram alguns meses antes da primeira guerra mundial que manteve quatro anos de sangueira por toda parte.

Uma vez escrevi que Cristino teve velhice de serenidade, pois ao longo dos anos nunca se desviou para a inveja, para o ódio, para as veredas das ambições vulgares, para fugir ao trabalho e ao cumprimento do dever. Homem-padrão, no mais amplo sentido do termo, caráter límpido. Os seus escritos revelam o homem reto, o homem cívico, o homem que viveu satisfeito com a consciência. Escreveu, ensinou e educou. Construiu obra literária vigorosa, alteada por conhecimentos profundos expressos com asseio de linguagem, num estilo de encantadora simplicidade. Honrou as letras jurídicas nacionais com quatro trabalhos e publicou obras de valor no campo da literatura, especialmente os magistrais ensaios sobre Rui, Pedro Lessa, Lucídio Freitas, Clodoaldo Freitas, Da Costa e Silva, Salvador e Lúcio Mendonça, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Bilac e Clóvis Bevilaqua. Pertenceu à Academia Piauiense de Letras, cadeira de número quinze.

Certa vez, quando Cristino completou noventa anos de idade, perguntei o segredo da serenidade desse homem de virtudes singulares. E respondi que o seu segredo estava no cumprimento do dever para com a humanidade, perfumando-a, como ele disse dos homens justos e bons. Hoje acrescento que o segredo da serenidade de Cristino, numa velhice de glória, se deveu também à extraordinária companheira durante quase setenta anos, num lar que ambos fizeram, com afeto, estima e sobretudo respeito mútuo e capacidade de doação, nas alegrias como nos dias de lutas e sacrifícios. Dulcila honrou a família e conseqüentemente soube ser fiel ao seu destino de esposa e mãe verdadeira.

Por A. Tito Filho

In: Cristino, Vida Exemplar. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 1992. p. 88-89

terça-feira, 3 de abril de 2012

LUTA E VERDADES DO MESTRE

Na primeira sessão da Academia Piauiense de Letras, depois do falecimento do seu presidente, foi ofertado aos acadêmicos, pela viúva Delci Maria, o último livro (ainda não lançado oficialmente) do nosso saudoso A. Tito Filho, livro contendo crônicas selecionadas sob o título TEMAS ATUAIS e que, na nossa opinião, sintetizam a luta e o pensamento social do mestre e grande homem que o Piauí perdeu a 23 de junho próximo passado.

Se não há remédio a perda, há entretanto o consolo de aproveitarmos este espaço, mostrando, desse último livro, algumas jóias da inteligência e do trabalho conceitual do humanista e sociólogo que foi José de Arimathéa Tito Filho:

"A televisão pratica o verdadeiro crime espiritual, uniformizando o Brasil. Música, cantoria, cozinha, vestuário, usos, hábitos, costumes, estória, sexo, brinquedos infantis, teatro, cinema, linguajar, lendas e diversões, tudo se vai bitolando para que se eduque um pobre povo abandonado e que se orienta, para comprar, para gastar dinheiro na imposição de quanta impostura o poder industrial fabrique".

"Desapareceram as práticas regionais. Sufocou-se a arte verdadeira. Impera a subliteratura. A deformação é geral. O Brasil está totalmente submisso a uma civilização empacotada. (Ainda Televisão, páginas 14 e 15).

"A mocidade está rica de maus exemplos, em protestos freqüentes contra a alta sociedade doente que cria a seu modo e fisionomia. Há frustrações econômicas e sexuais nos espancamentos e nos assassinatos". (Constituições, página. 17).

"Desde muitos anos a vida social brasileira se vem deteriorando, dia por dia, nos valores espirituais, sobremodo, e mais do que tudo na ausência de pudor e de honestidade. Vigora o cinismo e o homem não se envergonha dos atos mais condenáveis em busca das bacanais de sexo e álcool e na obtenção de dinheiro a qualquer preço. A alta roda vive de futilidades, mas goza de privilégios incontáveis, a classe média se extingue na baixa renda e no sacrifício das prestações, sem o necessário para o sustento familiar, e o operariado vegeta nas angústias permanentes da habitação desumana e da fome endêmica". (Deterioração, página 18).

"As sociedades injustas não podem ter tranqüilidade, nem paz, nem sossego". (Gente Famosa, página 25).

"O bom negro brasileiro foi hipocritamente festejado no dia 13 de maio, cem anos da Lei Áurea, que acabou com a escravatura conforme dizem os forjadores de lorotas. Escravos continuam pretos, mulatos, índios e brancos sem dinheiro" (Escravatura, página 30).

"Liquidou-se o senso de moralidade. Aboliram-se práticas de leitura e de aprimoramento da inteligência. No prazer se fixam todas as vontades. Valem os instintos. Desapareceu a honra. O trabalho ainda vigora, mas incômodo" (Revolução Industrial, página 33).

"O raquítico salário-mínimo do trabalhador, quando arranja emprego, mal dá o transporte" (Busca da Megalópole, página 45).

"Salvar o menor é, antes de tudo, dignificar a família, concedendo-se a esta as condições para auferir os bens essenciais da vida" (Menores, página 47).


Hardi Filho, 19-20/07/1992, Jornal O Dia, p. 4 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

José de Arimathéa Tito Filho, por ele mesmo

Organizado por José Antônio da Silva* **

ARTISTA
Já se disse que o homem ordinário pactua com as injustiças sociais, mas o artista não pode com elas pactuar.

COMUNICAÇÃO
O homem, desde épocas primitivas, comunica o que deseja, o que determina, o que pensa, de maneiras inumeráveis: pelo que veste, pelo que  come, pelo olhar, pelas cores, por figuras, gráficos, imagens, pelo toque do sino ou do clarim, pelos usos e costumes que adota, expressando, pois, um mundo de mensagens que revelam aos outros as estruturas de sua personalidade.

COMUNIDADE
As comunidades humanas de vez em quando padecem provocações, que resultam de cousas diversas ­– crimes, intempéries da natureza, epidemias, atitudes passionais dos grandes ajuntamentos humanos, imprevidência das pessoas ou dos governos e outros.

CULTURA
A própria vida vale o conjunto de todos os processos culturais.

ECONOMIA
Nunca. Não confundamos finanças com economia. Nós podemos Ter dinheiro no bolso e sermos integralmente despreparados para a vida. E ainda podemos Ter muita economia conosco e não termos o que é necessário normal do homem, que é o dinheiro. A economia é um processo de felicidade das comunidades, de bem estar ...

ESCRITOR
Diríamos que o escritor vive num meio hostil, de intrigas, de invejas, de hipocrisias, e tudo vai derrotando o artista que chega ao ponto da acomodação. Ninguém repudia as idéias, mas se acomoda às normas de força das ditaduras reais ou aparentes.

... quando novo, o escritor é antiacadêmico por natureza. À proporção em que ele envelhece, busca as academias porque, ao cabo de contas, elas exercem, em virtude do próprio bafejo oficial, proteção a quem já se sente deserdado da sorte.

ESCREVER
Um livro, uma poesia, um pensamento que se escreve vale um filho espiritual muito terno. Então, qual o pai que gostaria de Ter um filho chamado de feio, de aleijado? Procuramos, pois, incentivar a quem escrever alguma coisa. Não fazemos elogios derramados, tanto que acontece uma coisa que muitos não observam: quando não temos nada que dizer do livro, falamos do autor, da pessoa, dos seus traços humanos, dos seus sentimentos; no final, alguma referência ao livro, acentuando o esforço do autor, a sua simplicidade, sem que destruamos os seus desejos e pretensões. Achamos que o melhor caminho para educar é o caminho do afeto, do querer bem.

HISTÓRIA
A ninguém é dado negar a importância da História na vida dos povos. Desenganadamente, fazê-lo é desconhecer que, sem ela, torna-se impossível a continuidade da cultura. Com efeito, sem memória, as civilizações ficam sem passado.

LINGUAGEM
A linguagem humana é meio de entendimento da comunidade que se manifesta por processos vários. Há a linguagem literária, asseada, estruturada, e ao lado dela a linguagem natural, despoliciada, no contato com os amigos, nas diversões, a linguagem chã, plena de expressões triviais, veículos de entendimento geral, que todos compreendem, instrumento de conversação do doutor com a verdureira, do sábio com o limpador de sapatos.

Há outros processos de linguagem: a linguagem dos gestos, dos dedos, dos olhos, a linguagem da gíria, por via da qual o povo ironiza situações e caracteres, e ainda a linguagem dos grupos profissionais, com a força psicológica do vocabulário na variedade desses grupos: trabalhar para o médico corresponde a operar, mas de trabalhar o ladrão tem entendimento diverso. E chegue-se ao calão, o processo de linguagem  deseducada, comum no submundo da malandragem, do meretrício.

A linguagem dos homens se manifesta por processos vários. Há a literária, polida, asseada, rica, regida por preceitos gramaticais; existe a usual, despoliciada, de todas as horas, a linguagem chã, planiciana, de estragos fonéticos, governada pelo menor esforço, aquela que é o veículo de entendimento geral. Adiante, a linguagem dos gestos – dos dedos, da cabeça, do piscar de olhos. E ainda a gíria, por via da qual o povo ironiza pessoas e episódios, e estabelece relações entre os objetos, a gente e os fatos. E mais: o processo da linguagem emotiva e do calão. E também uma maneira especial de comunicação, de causas profundas – um modo de ser representado pelo linguajar das pequenas paisagens populacionais, de reduzidas comunidades de povo, de lugarejos e
vilas ...

LITERATURA
São muitas as correntes literárias que dominaram a vida espiritual dos povos. Classicismo, romantismo, realismo, naturalismo, parnasianismo, concretismo, modernismo e quantos mais. Cada qual tem interpretação própria e autores respectivos. A crítica sempre procurou defini-las, como agora  fazemos, sem que sejamos críticos mas apenas ledor de documentos da literatura, com o polifonismo.

LIVRO
Dar livros de presente aos amigos é uma prova de que os consideramos inteligentes e cultos.

Os livros merecem todo nosso respeito, admiração e carinho: são eles que nos dão os conhecimentos de todas as ciências e artes. Em suas páginas é que registram todas as causas importantes da terra. Eles nos instruem e nos divertem. Servem de passatempo, de calmante, de remédio. Em uma palavra, os livros aumentam a nossa responsabilidade.

MUDANÇA
É necessário que haja reação e reação heróica. Faliram-se as elites políticas confundidas com os donos da economia dos povos; a salvação está na inteligência aprimorada que não se venaliza e na coragem de luta dos que têm fé.

NOVELA
Ninguém ignora que a novelística corresponde ao gênero literário da novela – um gênero difícil da criação artística, porque reclama ordenamento, sobretudo. A novela vale-se de fatos humanos reais, ou, quando fictícios, via de regra, verossímeis. A narrativa de ser curta, mais completa, integra ...

PALAVRA
Dispõe o homem da palavra – e as palavras substituem as cousas e realizam um vasto e eficaz processo de linguagem. Qualquer que seja a linguagem humana, porém, dos gestos, dos cânticos, das convenções, da fala, das artes, o seu estudo deve ser antecedido pelo conhecimento do símbolo, que se representa por signos e sinais.

POESIA
Se não disseram, é necessário que se diga: a poesia corresponde ao sentimento do mundo,  -  o sentimento das cousas, dos gestos, dos caracteres humanas, da natureza, da vida espiritual, da família, do afeto, dos aspectos filosóficos nas atitudes do homem, assim da forma que se elabora a poesia intimista e social.

Não cabe dúvida de que a poesia tem elevada função social e de que os poetas podem defender pontos de vista morais e políticos...

VERDADE
Nós temos sestro tristíssimos: quando ocupamos um cargo, ficamos empanturrados de grandeza, vaidosos, e acreditamos que apenas nós temos a verdade. Quando achamos que um professor não está seguindo o bom caminho e damos palpite a fim de que ele erre menos, o mestre se aborrece, passa a antipatizar conosco, ás vezes a odiar-nos, por isso nos eximimos de crítica.

Bibliografia

SILVA, José Antônio da. Dicionário de Sabedoria dos Piauienses - citações máximas sentenciosas do pensamento reflexivo dos Piauienses de todos os tempos. Teresina: EDUFPI, 2004.

** O blog agradece encarecidamente à José Antônio da Silva por ceder o texto publicado acima.