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sábado, 16 de julho de 2011

HISTÓRIA E LITERATURA: PESQUISA, CATALOGAÇÃO, DIGITALIZAÇÃO E REVISÃO DA OBRA DE ARIMATHÉIA TITO FILHO

ARTIGO APRESENTADO DURANTE O I SEMINÁRIO DE LITERATURA COMPARADA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ, NO PERÍODO DE 03 A 05 DE OUTUBRO DE 2007, QUE TEVE COMO TEMA "LITERATURA E OUTROS SABERES".

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Autores: Jordan Bruno Oliveira Ferreira (1) & Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim (2)


RESUMO: O trabalho ora apresentado traz resultados parciais da pesquisa intitulada “História e Literatura: pesquisa, catalogação, digitalização e revisão da obra de Arimathéia Tito Filho” que tem como problemática central perceber como nossa identidade de teresinense foi moldada pelo discurso que partiu da Academia Piauiense de Letras na figura célebre do seu presidente, A. Tito Filho, que manteve o controle da mesma por mais de vinte anos, formulando bases que ainda hoje são referenciais para a forma como mantemos relação com a nossa cidade de Teresina. Dessa maneira, a pesquisa tem ênfase na produção documental de A. Tito Filho, principalmente suas crônicas jornalísticas e suas obras bibliográficas por permitirem visualizarmos uma multiplicidade de fatos que notabilizaram as últimas décadas do século XX, em Teresina.  
Palavras-chave: História e Literatura – A. Tito Filho - Cidade


1. Introdução
O artigo traz uma discussão da pesquisa intitulada “História e Literatura: pesquisa, catalogação, digitalização e revisão da obra de Arimathéia Tito Filho” que tem como problemática central perceber como nossa identidade de teresinense foi moldada pelo discurso que partiu da Academia Piauiense de Letras na figura de seu presidente, A. Tito Filho (3), que manteve o controle da mesma por mais de vinte anos, formulando bases que ainda hoje são referências para a forma como mantemos relação com a cidade de Teresina.
O objetivo principal dessa pesquisa é tentar demonstrar que Teresina, enquanto campo de abordagem, é criada e recriada continuamente devido à circulação e projeção de inúmeras imagens que tem como finalidade estabelecer um “real”. Esse “real” pode ser visualizado ou detectado através dos devidos discursos e olhares que procuram justapor e contrapor dizeres, oferecendo cadeias de significados para aqueles que participam e assimilam formas diferenciadas desses discursos. A Teresina existente em nossa memória só existe enquanto projeção vivida, enquanto construção ou como multiplicidade de percepções que irá depender da forma como assimilamos cada fase ou cada momento de nossa existência. Essas percepções são continuamente registradas pelos mais diferentes sujeitos, responsáveis pelo processo de apropriação de imagens sobre nossa construção identitária, como os romancistas, cronistas, poetas, arquitetos, urbanistas, chargistas, historiadores e outros que formulam imagens, lembranças, vivências, sentimentos, códigos de postura, formas de ver e viver, além de outras sensibilidades que fazem parte de nossa socialização.
Dessa maneira, escolhemos a produção documental de A. Tito Filho, principalmente suas crônicas jornalísticas e suas obras bibliográficas por permitirem visualizarmos uma multiplicidade de fatos que notabilizam as últimas décadas do século XX em Teresina. Assim, neste artigo, as crônicas ocupam um lugar de destaque já que ocupam a maior parte do material pesquisado e catalogado até o momento, através do processo (de fotografia) digital. A crônica, enquanto linguagem literária, cumpre a função de inverter o tempo do progresso, possibilitando acessar outras virtuais possibilidades de entendimento de uma dada “realidade”, propondo que passado e presente sejam cruzados, em uma perspectiva inovadora, no intuito de tornar possível o conhecimento dos sujeitos e dos objetos diante da fluidez “usos”, que vão se estabelecendo durante o curso do processo histórico.
Neste sentido, buscamos analisar as obras produzidas por A. Tito Filho, transpô-las, registrando os vários sentidos que circulam entre o escrito e as formas de pensamento, e, principalmente, procurando mostrar o que elas revelam, apontam, manifestam, enquanto imaginário de uma época, buscando um entendimento plural e cultural da cidade. A produção do autor fixa posições, constrói conteúdos e sentidos, faz aparecer um arranjo cultural, vivências, pensamentos e sensibilidades; operam com estratégias, tentando aproximar-se de um imaginário coletivo de uma época.
Assim, buscamos “ler” a cidade de Teresina como uma das possibilidades de entendê-la enquanto construção de significados que operam, a rigor, na construção do pensamento social e cultural. Seus escritos “fundam” uma cidade, fornecendo códigos de legitimidade, que são buscados no passado, enquanto instâncias seguras ante o desequilíbrio causado pela modernidade.

2. Teresina, cidade da perdição.
Como colocado anteriormente, as crônicas têm ocuparam lugar de destaque no material coletado durante a pesquisa. Não só pelo volume produzido por A. Tito Filho, que é enorme, mas tambem pela variedade de temas que podem ser trabalhos, de acordo com os critérios de quem está lidando com o material. Assim, as que mais me chamaram a atenção foram alguns textos produzidos pelo autor acerca do problema (na época considerado como tal) dos jogos de azar em Teresina no final da década de 1940, sobretudo o jogo do bicho.
Percebemos também que é possível não só trabalhar as crônicas em si, acerca deste e outros temas, como também discutir a própria crônica em si, e suas múltiplas possibilidades para os trabalhos dos historiadores. De acordo com Chalhoub (2005) a crônica enquanto gênero literário surgido no Brasil do final do século XIX, ao acaso, da espontaneidade de uma conversa, teria como uma de suas características primeiras a leveza. Ao tratar de temas diversos, alinhavados pela arte das transições, fariam dos pequenos acontecimentos sua matéria-prima privilegiada. A segunda característica da crônica seria a suposta ausência de elaboração narrativa do gênero. Habitualmente vista como um híbrido de jornalismo e literatura, ela se aproximaria, na sua concepção, do caráter despretensioso e datado de uma noticia de um jornal. O autor lembra que na verdade, quando da sua formação a crônica vivia a tensão entre uma elaboração narrativa e o dever de dialogar de forma mais direta com os temas e questões de seu tempo. Mas não se trata de um gênero simples, para além dessa leveza apontada anteriormente, essa característica aponta para outras, sendo esta uma das principais: a cumplicidade construída entre o autor e o público quanto aos temas e questões a serem discutidos. Ao cronista cabe a responsabilidade de buscar, dentre os acontecimentos sociais de maior relevo e divulgação, capazes de formar entre escritor e leitor códigos compartilhados que viabilizassem a comunicação, temas que lhe permitissem discutir as questões do seu interesse.
Outro aspecto importante da crônica apontado é a necessidade de diferenciá-la da história, bem como o historiador do cronista. Ao contrário do historiador, caberia ao cronista interagir com as coisas de seu mundo, meter-se onde não era chamado para transformar o que se via e se vivia. Não analisando assim a realidade de forma exterior, mas dialogando com outros sujeitos, participando das discussões. A crônica teria assim, como uma de suas marcas esse caráter de intervenção na realidade. Ao trabalhar com fontes desse tipo, é preciso perceber que a leitura das crônicas demanda de seus leitores e o do pesquisador, uma atenção às redes de interlocução a partir das quais elas são escritas com o esforço cuidadoso para decifrar o processo de sua elaboração narrativa. Se o cuidado e a ligação com a realidade aproximam a crônica de outros gêneros literários, tal paralelo esbarra, porém, em um elemento que a singulariza: a indeterminação. É o que especifica a crônica. O cronista está sempre sujeito ao imponderável do cotidiano, que tanto lhe fornece temas e problemas com os quais discutir quanto modifica e redireciona suas opções. 
O autor de uma crônica, tem também que contentar o público, trazendo a folha os temas e as questões de sua predileção. A crônica é assim gênero dialógico por excelência. Se o cronista faz dos seus textos um modo de intervir na realidade, influenciando assim os leitores, por outro lado ele tambem é influenciado por eles, cujas expectativas e interesses ajudavam a definir temas e formas que passaria a adotar. Por último, outra característica que singulariza a crônica é sua estreita ligação com a imprensa. Com tiragens muito maiores que outras obras impressas, os jornais se constituíram nos principais veículos de comunicação com o grande público. Mesmo sem se confundir em nenhum momento com o jornalismo noticioso, a crônica mostrava-se, mais do que qualquer outro gênero, atrelada ao jornal no qual era publicada.
Estas crônicas de A. Tito Filho fazem parte do material coletado na primeira fase da pesquisa, que é composta basicamente de fontes hemerográficas tais como:
1 – As crônicas e artigos publicados em revistas especializadas como “Cadernos de Teresina”, “Revista da Academia Piauiense de Letras”, “Revista Presença”, além de outras publicações registradas e catalogadas durante a pesquisa, como por exemplo, o “Cadernos de Comunicações: A. Tito Filho”;
2 – Jornais datados a partir da década de 1940, disponíveis no Arquivo Público do Piauí, que servem para o mapeamento das crônicas e artigos do literato em estudo, assim como indícios de prováveis espaços que o literato tenha ocupado;
3 – Fontes bibliográficas e revistas pertencentes aos arquivos da Academia Piauiense de Letras;
4 – Por fim, artigos e notícias referentes à A. Tito Filho presentes em jornais e revistas especializadas.

Interessa-nos abordar as crônicas publicadas no final da década de 1940 nos jornais de Teresina, O Dia, A Resistência e O Piauhy, nos quais A. Tito Filho aborda questões que envolvem família, Estado e sociedade, dentre outros temas, mas com aquele caráter apontado anteriormente quando fazíamos uma caracterização da crônica, ou seja, são textos recheados de indeterminação. Uma discussão aparece em um jornal em determinado ano, mas só volta a ser discutida no ano seguinte, e mesmo assim já em outro jornal. Ou mesmo o caso de estar pesquisando um determinado jornal em um determinado ano, e ler um comentário do próprio autor apontado para o fato de que já tinha abordado aquele tema anos atrás. A situação só fica mais complicada, porque você fica na dependência do tal jornal estar ou não disponível para consulta. É um dos maiores obstáculos ao se trabalhar com fontes hemerográficas: não só o estado de conservação é importante, mas a própria disponibilidade em si. A segunda depende, e muito, da primeira. Assim, lidamos com textos do autor referentes aos problemas da cidade, e um dos primeiros textos, intitulado “Cidade sem Lei”, publicado no Jornal A Resistência, em 05 de novembro de 1949. A. Tito Filho inicia o texto comparando a cidade a um filme também chamado Cidade sem Lei(4), e então exibido no Cine Rex. Qualquer um que tivesse visto o filme, observaria o que estava se passando em Teresina, e no que dizia respeito à insegurança e à ordem pública dos cidadãos, era ela também “uma cidade sem lei”. Nos perímetros urbano e suburbano davam-se freqüentes roubos e furtos; a jogatina campeava em todos os recantos da cidade, “enfestada” por legiões de mendigos (alguns verdadeiros e outros falsos) que invadiam lares, cafés e restaurantes. Era possível ver até loucos, falando sozinhos e “soltando pinotes”, perambulando pela praça Rio Branco. Bem, isso era de dia, então A. Tito Filho traça o painel noturno: das oito da noite em diante a praça Rio Branco se transforma “em cabaré ao ar livre”, já que na mesma se aglomeravam dezenas de meretrizes. E finaliza apontando para a indiferença criminosa das autoridades, sobretudo por parte de Rocha Furtado (5), diante de tais fatos humilhantes e vergonhosos.
Diante de afirmações desse tipo, fica-se com a impressão de que temos duas opções: ou A. Tito Filho é um grande reacionário (ou conservador, ou seria o inverso?) ou o seu texto (que trata dos problemas da cidade) é um pretexto pra atingir o governador. Na verdade, qualquer uma das opções seria um julgamento. E a história já ultrapassou esse tipo de análise, ou pelo menos é que se espera que ela tenha alcançado. Cabe então ao pesquisador procurar outras fontes, para que possamos fazer comparações, já que este é um dos elementos que mais identificam a crônica ou o trabalho com a crônica: a série. Então, no Jornal O Dia de 17 de abril de 1960 (ou seja, uma década depois), em um texto intitulado A vaca e o Hotel, A. Tito Filho segue reclamando dos problemas da cidade, mas dessa vez já conseguimos identificar alguns elementos que vão além de uma simples critica política (não que houvesse algo de errado nisso):
São 6 horas da tarde de 13 de abril: não há luz. Já comprei, para hoje, 2 pacotões de velas por Cr$ 80,00. O IAEE (6) pagará essa despesa? O IAEE já pagou Cr$ 600.000,00 de lenha que deve ao amigo Edison Parente? Até quando o IAEE martirizará um povo, o povo teresinense?
Minha cozinheira afirma que lenha é coisa de civilização primária. Até quando o IAEE entende que o Piauí deva viver nesse primitivismo de civilizações? Quantas industrias, nesta terra, necessitam de energia? Quantos processos de vida estão sendo sufocados pelo IAEE? Atesta a LBA, em oficio, que o deve mandar desobstruir fossas dos meninos das Ilhotas. Para isto que serve o IAEE? As turbinas vivem de lenha, primariamente. Energia que vem das turbinas. Quanto deve o IAEE aos fornecedores de lenha para movimentar as turbinas?
Verdade é que o IAEE só tem sido útil aos ladrões noturnos e ao comercio de velas. A mais ninguém. Graças a Deus de cá dos meus domínios ladrão leva o que se leva da vida: nada. Mas tenho padecido muito, sem defunto em casa, com compra diária de pacotões. Cr$ 40,00 cada um. Pior que eu só o correto Edison Parente: compra pacotão e não recebe o dinheiro da lenha que vendeu ao IAEE. (Grifos do autor)

Aqui já conseguimos perceber elementos bem mais elaborados do que no texto anterior, que realmente tinha um tom de ataque político que (poderia) sobressair-se na totalidade da fala do autor. Apontar a lenha como algo pertencente a civilizações primárias dão pistas, indícios, de que há uma tentativa de elaboração de um discurso que tenta organizar a cidade, apontar seus defeitos, os culpados, e conseqüentemente as soluções. Assim, a falta de luz só pode mesmo ser algo absurdo, coisa de país (ou cidade) atrasada. Além de atrasar os “processos de vida” e as necessidades das indústrias. Ora, o IAEE estaria então atrasando o progresso. Mas será possível que o autor se contentaria apenas em querer organizar a cidade? Pesquisando os textos do autor publicados no Jornal O Dia, percebemos que organizar a cidade é apenas uma etapa do processo, é preciso dar conta das pessoas também, ou melhor, da sociedade.
Durante a pesquisa acabamos recuando novamente a década de 1940, e se deparando com a questão dos jogos de azar em Teresina. Ora, se é do interesse do autor organizar a cidade, civilizá-la, correr o risco de se deparar com algo tão complicado como o jogo, tido já naquele momento como crime, era insuportável. Assim, A. Tito Filho fala sobre o jogo em Teresina no Jornal O Piauhy de 1948:

“A primeira vez que tomei parte numa banca de jogo, entrei com 35$000 e tive uma sorte inaudita. Dominei a fama dos veteranos de bacará, e, pela madrugada, quando em retirei, levava, no bolso, mais de 800$000, alem do que me ficaram devendo. É fácil imaginar meu deslumbramento deante de tamanha fortuna! Mas engano dalma ledo e cego. Daí por diante experimentei todas vicissitudes do azar caprichoso e traiçoeiro. Passei a servir de joguete nas mãos dos mais espertos.”

Higino Cunha – “Memórias”.

Acrescenta o mestre:

“Persisti durante cerca de três e fui obrigado a abandonar para sempre o jogo de cartas, malferido na bolsa e na reputação e convenci-me da minha incapacidade para tão arriscado mister”. E mais: O jogo “não cria amizades sinceras e duradouras, nem simpatia entre os homens. Mesmo ganhando-se dinheiro, perde-se a confiança no trabalho regular e o tempo que devera ser aplicado em outros misteres, perde-se o credito e a boa fama, e adquirem-se habitos maus, que envenenam a existencia de modo irreparável!”

Despe, leitor amigo, a roupagem vistosa com que te apresentas ante as frivolidades da sociedade e vem comigo, lado a lado, para uma peregrinação noturna nos antros da jogatina. São oito horas da noite, é cêdo, a cidade toda mergulhou na sonolencia, depois do trabalho exaustivo de seus habitantes. Arrulham ainda poucos casais nos bancos de praça, mocinhas acabam de cansar as batatas da perna volteando na pista da Pedro II. Daqui a pouco tudo dorme. Apenas funciona o jogo, a terrível chaga social – sorvedouro da honra de muitos, desgraça de tantos lares, causa de inumeras tragedias. Funciona o jogo, leitor amigo, no centro da antiga Chapada do Corisco – nos clubes, nos bares, em casas particulares, em toda a parte. Desaparecem, no torvelinho medonho da jogatina, o pão, a roupa, o livro, a educação de muitas crianças teresinenses. Esposas aflitas rezam no recesso de residencias humildes, chupando muitas vezes a carie de um dente, ou, em cima de três pedras, preparam um ralo mingau de farinha com que entupir o bucho das crianças famintas, enquanto o marido, no covil da jogatina, descarta-se do dinheiro, do relogio e da aliança de casamento para para alimentar o terrível vicio – fumando e bebendo, dores nas costas, debrucado na mesa fatídica, ou avido, nervoso, espiando a roda de roleta, atento ao ruído da palheta, ou, ainda, ouvido apurado, marcando numeros, à espera de que lhe dêem, no víspora, a pedra boa ...

JOGO, MUITO JOGO

- Cinqüenta e cinco ... numero oito ... noventa ...
É a voz arrastada do chamador, anunciando as pedras do víspora, uma a uma, os viciados, palidos  e pigarrentos, marcam os cartões, entre baforada de um cigarro quando estes desgraça os restos de pulmões e o trago de aguardente que lhes corroe as tripas ...
Reino da batota e do deboche – a comunidade de caras mal dormidas se expande, depois do ultimo rateio, no linguajar de calão, parebenizando os felizardos da noite e consolando, com uma palmada nas costas, so companheiros de desgraça e desventura.
Um pouco mais adiante, leitor amigo, o croupier anuncia, com gosto infinito, o ultimo lance da roleta miserável:
- Deu 15, jacaré ... Cercado com dois mil reis.
O desgraçado, mãos nos bolsos, coçando os ultimos tostões do ordenado ou as ultimas economia do pé de meia, lembra-se do sonho de tres dias atras, soma, multiplica, subtrai, divide por dez – e verifica, após maldizer a sorte ingrata, que o bicho era mesmo o jacaré ...
A RONDA DOS AGIOTAS

Não se assuste leitor amigo. Estiremos as peruas um pouco mais, e observemos a praga do jogo. Da Praça Rio Branco à Piçarra, da Piçarra as imediações da Praça Landri Sales, desta a rua Álvaro Mendes, daqui à rua Areolino de Abreu. Das frestas das janelas e das portas, saem os minusculos focos das luzes denunciadoras. Em tudo domina o silencio, impera o sussurro. Poucas vezes reboa a gargalhada. Ouve-se bem o ruído de mãos tremulas traçando o baralho. Poker. Bacarat. Pifpaf.
O Parceiro “chora” as cartas, visando à sensação. “Entrou no meio”, “seus vinte e mais quarenta”, “abro com dez”, “colei uma sequenciazinha” – são as frases ensaiadas, ensarilhadas, engatilhadas ...
Em volta das mesas, as duas qualidades de assistente: o “peru”, que tudo perdeu, inclusive o caminho da honra, e o agiota, na ronda macabra, olhos fitos nas joias do parceiro infeliz, consciencia firme nos 40 % ou 50 % de lucros à custa da vida hipnotizada ...

UMA CARTA E UM APELO

Já vimos muito, leitor amigo, mas não vimos tudo, embora estas pequenas anotações sejam suficientes para uma carta e um apelo, redigidos uma e outro, nos seguintes termos:
“Meu caro delegado Neiva. Estivemos juntos, pela ultima vez, se me não falha a memória, em a noite de 6a. feira. Tornei, nessa ocasião, a falar-lhe do jogo – e mantivemos, sobre o assunto, cordial conversação. Perseguir os pobres e humildes jogadores de sete e meio e relancim, privar-lhes do vicio, processar os pequenos exploradores da desgraça alheia, enquanto os ricos e poderosos, os de gravata e sapatas engraxados, podem, livremente, praticar o poker, o pifpaf, o vispora – é cousa que se não coaduna com o seu feitio moral. A lei das Convenções Penais não faz exceção. Exceção não faz o decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo General Eurico Dutra – disse-me você, lembrado talvez de que muitas mães de família lhe imploravam guerra total ao terrível vicio.
Esposas pobres e esposas ricas lhe imploram a esmola do combate ao jogo. Filhos doentes, desnutridos, atacados de lombrigas, olhos remelentos – necessitam dos cuidados que lhes proporcionam os dinheiros sumidos na voragem do jogo. Só voce, meu caro Neiva, com apoio sadio do eminente Governador Rocha Furtado e do ilustre Chefe de Policia, pode dirigir um ultimatum a todos os exploradores, declarar-lhes guerra, aferrolhar os antros, processar os criminosos. Nas suas mãos encontram-se as armas – todas legalissimas – com as quais poderá você aniquilar o mal medonho, que tudo arruina, que tudo avilta, que tudo desgraça.
E depois da limpeza, meu caro Neiva, poderá voce, com a consciencia tranqüila ler esse trecho sublime:
‘Esse mal – o jogo – que, muitas vezes, não se separa do lupanar senão pelo tabique divisório entre a sala e a alcova; essa fatalidade, que rouba ao estudo tantos talentos, á industria tantas forças, á probidade tantos caracteres, ao dever domestico tantas virtudes, á pátria tantos heroismos, reina sob a manifestação completa em esconderijo, onde a palavra se abastarda em calão, onde a personalidade humana se despe de seu pudor, onde a embriaguez da cubiça delira cinica e obscena, onde os maridos blasfemam pragas improferíveis contra a honra conjugal, onde, em uma comunhão odiosa se contraem amizades inverosimeis, onde o menos que se dissipa é o tempo, estofo precioso de todas as obras primas, de todas as utilidades solidas, de todas as ações grandes. Inumeravel é o numero de criaturas, que a tentação, o exemplo, o instinto, o habito, o acaso, a miseria humana, a passar por esses latibulos, cuja clientela vai periodicamente fazer-se apodrecer ali por gozo, por avidez e na corrução, em cujos misterios cada iniciado se afaz a ir deixando ficar, aos poucos, a energia, a fé, a nobreza, o juizo, a honra, a temperança, a caridade, a flor de todos os afetos, cujo perfume embalsa e preserva o caráter’.
Tambem exerci o cargo de Delegado de Transito e Costumes, do qual me exonerei por livre e espontanea vontade, meu caro Neiva. Conheço muito bem as lutas que você está tendo para desempenhar suas funções e corresponder á confiança da sociedade. No exercício das minhas funções tudo fiz para exterminar o jogo, graças a Deus.
Mas não fiz porque se exonerou da Chefia de Policia o Dr. Eurípedes de Aguiar, que sempre me deu inteiro apoio na luta terrível.
Sei que você atenderá, dentro das suas forças e da sua boa vontade, servido por um elevado espírito de honestidade, este apelo.
Um cordial abraço do A. TITO FILHO”.
    
Além das questões relativas a cidade e os seus problemas, é possível perceber nesta crônica boa parte das características apontadas por Chalhoub.  A leveza do texto, elaborado num formato espontâneo, como uma conversa. A cumplicidade entre autor e o leitor, onde A. Tito Filho assume a responsabilidade de levar o leitor (como que pela mão) por caminhos tortuosos e perigosos da cidade, e que poucos (provavelmente) conhecem. A intervenção na realidade, que é clara, sobretudo na riqueza dos detalhes das descrições, bem como nos apelos feitos aos devidos responsáveis para que medidas sejam tomadas. E mantendo a estreita ligação com a imprensa, já que mantém a todo o momento o tom jornalístico do texto. Não nos esqueçamos do conteúdo da crônica em si, o problema dos jogos de azar. Em outra crônica, dessa vez no Jornal A Resistência de 07 de agosto de 1949, pouco mais de hum ano depois, o autor volta a abordar o mesmo tema, no que ele diz ser a primeira de uma série de reportagens sobre o assunto.
Na verdade, o único texto que conseguimos localizar foi esse, o que acabou se configurando como aquilo que Chalhoub chamou de indeterminação. Apesar do que o autor informou, esta perece ter sido a única reportagem sobre o assunto. Pesquisando nos jornais dos dias e meses seguintes, outras reportagens não apareceram. Por quê? Dificílimo apontar algum motivo. Podem ter ocorrido pressões por parte de autoridades, políticos, ou mesmo simplesmente apareceu algo que o autor considerou mais importante cobrir. De qualquer forma, fica claro no texto a preocupação do autor com o jogo. Aponta que o jogo de azar campeia livremente nas ruas da capital teresinense, no que considera uma afronta a Nação inteira (!) e às leis que governam a sociedade, como que desafiando as autoridades, fazendo com que se duvide até que por trás dos bastidores políticos existam pressões interessadas e coniventes com a situação (tida como criminosa).
Para o autor, dentre as piores coisas que poderiam acorrer na cidade, a prostituição (desenfreada), o alcoolismo (sem repressão), a mentalidade sem auxilio prático e resoluto do Governo, da infância delinqüente e abandonada, o jogo se enfileira e sobrepõe a qualquer outro problema, porque derruba instituições, degrada a mente e abre caminho para o crime. O jogo era considerado como o início do fim, já que quando em uma nação ou Estado as pessoas procuram no vício do jogo um motivo para sua degradação moral, o que existe de mais puro nelas estará perdido. Interessante também observar como o autor descreve o próprio trabalho de reportagem:

O nosso objetivo era atingir o covil do jogo. Vê-lo de perto. Sentir as sensações que ele nos oferece para podermos pintar o quadro real para os nossos leitores. Dez mais ou mais cambistas ali estavam localizados. De momento a momento, as poules eram arrancadas dos talões e os centavos e os cruzeiros dos incautos caiam em seus bolsos como o maná do Céu no Sermão da Montanha. Mas, não era ali o Quartel General do jogo do bicho. Não seriam, também, o “Bar do Carvalho” e o “Restaurante Cairú”, os pontos de reuniões dos transgressores da lei! 
   
   Enfim, independentemente do pensemos sobre o jogo do bicho hoje, ou mesmo os contemporâneos de A. Tito Filho, a espeficifidade de um tema como esse, para um leitor de hoje, apresenta a necessidade de uma cuidadosa tarefa de interpretação para decifrar e decodificar os termos do cronista. Só assim será possível relacionar definitivamente estes textos a realidade que é, ao mesmo tempo a matéria-prima e o horizonte de intervenção do cronista. Longe de refletir ou espelhar um momento da história de Teresina, o que o autor tenta é conhecê-la da forma mais aprofundada possível, indo onde seja necessário, e assim transformá-la. Pra isso, ele se vale de um tom leve, que atrai o leitor, em conjunto com o alcance possibilitado pelo trabalho na imprensa. Assim, ele também acaba conseguindo traçar um perfil para suas séries, que torna as crônicas uma forma de trabalho ainda mais complexo de se lidar, enquanto fonte.    


Referências Bibliográficas

BENJAMIN, WALTER. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 253 p. – (Obras Escolhidas: Vol. 1)

BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. Cotidiano, Narratividade e Representação na Teresina de meados do século XX. Teresina: UFPI, 2006. 170 p. Dissertação. Curso de Mestrado em História do Brasil, Universidade Federal do Piauí, 2006. 

CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.). Histórias em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2005. 590 p. (Coleção Várias Histórias)
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NOTAS
(1) Graduado em Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí . 

(2) Professora-orientadora, Mestra em História do Brasil pela UFPI e Doutoranda em História pela UFPE.

(3) José de Arimathéia Tito Filho (Barras, 1924 – Teresina, 1992) era historiador, cronista, jornalista, professor e foi presidente da Academia Piauiense de Letras (APL).

(4) A. Tito Filho provavelmente está se referindo ao filme San Antonio, lançado em 1945 e dirigido por David Butler, que contava a história de Jeanne Starr (Alexis Smith), uma dançarina de salão que trabalhava para o chefe do crime local e que acaba se apaixonando pelo “mocinho” Clay Harden (Errol Flynn).    

(5) José da Rocha Furtado governou o Estado do Piauí no período de 1947 a 1951 e faleceu em Fortaleza (CE) no dia 27 de fevereiro de 2005, aos 96 anos de idade, vítima de vítima de parada cardíaca.

(6) O Instituto de Águas e Energia Elétrica (IAEE) foi o órgão antecessor da AGESPISA (Águas e Esgotos do Piauí S.A.) criada através das leis estaduais n.º 2.281, de 27 de julho de 1962 e 2.387, de 12 de dezembro de 1962 e da CEPISA (Centrais Elétricas do Piauí S.A.) que foi criada em 08 de agosto de 1962.  

BREVE CURRÍCULO DE A. TITO FILHO

José de Arimathéa Tito Filho nasceu em Barras, a 27 de outubro de 1924. Era filho do desembargador José de Arimathéa Tito e Nise Rego Tito. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, dedicou sua vida às letras.

Dono de um rico curriculum, exerceu várias atividades em Teresina. Foi fiscal previdenciário, professor e escritor.

Como professor, ensinou OSPB e Estudos Sociais no Colégio Estadual do Piauí, hoje Zacarias de Góis; sociologia Educacional na Escola Normal Oficial; Língua e Literatura Portuguesas na antiga Faculdade Católica de Filosofia. Foi diretor do Colégio Estadual do Piauí.

Foi interventor federal na Federação de Futebol do Piauiense de Futebol. Consultor jurídico e Presidente da extinta comissão de Abastecimento e Preços do Piauí. Foi chefe de Grupo Executivo de Administração do Ministério da Agricultura.

Foi secretário geral e presidente da Academia Piauiense de Letras, desde 1971. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Associação dos Jornalistas Profissionais do Estado do Piauí, logo transformada em Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Piauí. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura.

Foi secretário de Cultura e de Educação do Piauí. Secretário da Biblioteca, Arquivo e museu do Piauí (Casa Anísio Brito). Assessor do Comando Geral da Polícia Militar. Atuou como membro da Comissão de Levantamento Cultural do Piauí e Presidente do Grupo de Trabalho de Readaptação do Ministério da Agricultura no Piauí.

Foi um dos criadores do Plano Editorial do Estado. Membro de Comissões Julgadoras de Concursos Literários da Secretaria de Cultura, da Academia Piauiense de Letras, da Universidade Federal do Piauí e de outras instituições culturais e artísticas. Membro da Comissão Julgadora do Concurso de Reportagem Paulo de Tarso Moraes da Prefeitura de Teresina.

Membro da Comissão Julgadora do Concurso de Português e Francês do Ministério da Educação e Cultura. Membro da Comissão Organizadora do Centenário de Nascimento de Da Costa e Silva. Presidente da Comissão Julgadora do Concurso de Contos João Pinheiro da Fundação Cultural do Piauí. Membro da Comissão Julgadora do Concurso Martins Fontes, por ocasião do Centenário de Nascimento do autor. Membro da Comissão de Concurso de Dramaturgia da Fundação Cultural do Piauí. Membro-examinador do Concurso José Lins do Rego do Banco do Nordeste.

A. Tito Filho recebeu convites os mais diversos para figurar em altos cargos fora do Piauí. Porém, o seu amor por esta cidade fez com que ele recusasse todos estes cargos. A. Tito Filho deixou isso registrado em "Teresina Meu Amor" e em centenas de artigos publicados nos jornais da terra.

In: Cadernos de Comunicação: A. Tito Filho. - novembro, 1994, editado pelo Sindicato dos Jornalistas do Piauí.