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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Retratos da Memória

A. Tito Filho

Durante cerca de dois séculos, a vida da família piauiense se passou no sertão, sob a autoridade incontestável do pai, chefe geral, a quem todos prestavam severa obediência, inclusive a mulher e a filharada de machos e fêmeas. Não tivemos, por causa da economia pastoril, a promiscuidade da senzala, nem o relho do feitor desalmado e impiedoso.

A fazenda representou o centro de uma vida de trabalho pela sobrevivência, misturados brancos e pretos, em liberal comunhão - e ambos se fundiram para produzir o vaqueiro. A natureza tornou-se o clima e o pão de cada um. Comia-se de modo farto, tanto o alimento de preceito, como o comum, no correr das semanas, todos muito condimentados e gordurentos. Abusava-se no doce de variados tipos.

Os tempos correram e as mudanças se fizeram vagarosamente. Cultivaram-se anos a fio os mesmos hábitos. As mulheres de anáguas rodadas. Casavam-se cedo as sinhazinhas. Lentas, porém, as transformações, impostas pelo caminhão a rasgar estradas derribando a mata. Depois, o gramofone. O rádio e o rádio de pilha. Chegaria a vez das cenas televisivas.

Maria Francisca Azevêdo, neste CASARÃO, faz história social. Memoriza fatos e episódios e nos revela a vida familiar interiorana mais ou menos da terceira década deste século aos dias de hoje. Não esquece a riqueza econômica das palmeiras. Fixa retratos em linguagem simples, ágil, que parecem filmes vivos de uma sociedade que a civilização industrial sacrificaria para satisfazer poderosos interesses alheios.

A autora mostra o casarão ou a casa-grande, a segunda e última etapa da evolução da fazenda, que perdeu os proprietários e respectiva prole, atraídos pelos confortos das grandes cidades, ao contrário dos seus antepassados. Também a fazenda desapareceu o fausto e foi-se esplendor das épocas antigas.

Este livro constitui retratos de um mundo perdido - um mundo de encanto, de fartura, de brincos maravilhosos da infância e da adolescência. Passeios inesquecíveis, os banhos nos córregos de águas límpidas, os bailes, as festanças de casamento, o pomar e a varanda, os bichos do mato, os tipos humanos e os cenários da natureza opulenta e dadivosa, os dias e as noites daquela beleza espiritual que convite no coração da gente.

Retratos leais. Páginas e páginas vivas que nos confortam e nos transmitem lembranças de um passado melhor. Retratos sem retoque da forma que só o poder de observação e a memória extraordinária sabem compor, para que, nítidos, evoquem troncos familiares, a bondade dos pais e a vida feliz e alegre reinante no CASARÃO.


In: AZEVÊDO, Maria Francisca. O Casarão: do Olho d'Água dos Azevedo. Teresina, 1986.

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